3.3.10

Texto achado num poste duma rua de Sao Paulo

Em 2001, andando pelas ruas de São Paulo, em Higienópolis, encontrei umas folhas escritas à mão pregadas num poste:




"São Paulo, 10 de maio de 2001.
            Meu nome é Marthia Pasquali de Yema, mas todos me chamam de Márcia
            rg nr. 7.896.691-0. Nasci no Rio de Janeiro, Leme em 13 do 5 de
1949.
            Me criei em São Paulo, na Bela Vista, Rui Barbosa. Eu, Márcia,
            morava na Barão de Tatuí, 493, na pensão do seu Salvador Donatelle
            Sposito em um quarto e cozinha por mais de 12 anos, onde em julho e
            agosto de 1998, eu Márcia fui vítima de assassinato.
            Furaram as paredes do meu quarto, com furadeira e puseram gás dentro
            do meu quarto através dos furos. Eu não morri, o gás era gelado,
            parece que misturado com tintas usadas por o genro do seu Salvador.
            Eles
            todos dentro da pensão, em um quarto cedido por seu Salvador, em
            cima perto do quarto que era da dona Francisca Rosa que morreu.
            Colocaram uma câmera da TV Globo enfiada em um buraco da parede
            do meu quarto, eu os ouvia muito bem tudo que falavam. O Saulo
            Kankrest, seus irmãos gêmeos, Pinna Rosse Savio, Alberto Klogen
            Filho, Alberto Klegen pai. Dr. Vila Lobos, Dr. Fido Chao, meu
            ex-marido
            Ricardo Ismael Yena, as inquilinas.
            Foi então que colocaram uma antena parabólica no muro da pensão
            perto do meu quarto e colocaram gás, veneno da índia, gas atômico
            nuclear. Diz o Saulo que foi a Mariele Saraiva Leão que colocou
            ferros da máfia chinesa nos meus pés e corpo. Só sei que meu pé
            inchou muito. Aquele gás maligno entrou no meu corpo, na minha alma,
            ser.
            A dor difícil de defini-la. Dei um grito de dor, pedindo ajuda, mas
            ninguém me ajudou. Enquanto isso eu tentava salvar minha vida com
            água que Deus me deu. A idéia de jogar água sobre meu corpo. Peguei
            meu baldo verde, peguei água do tanque da Edite e joguei água sobre
            meu corpo.
            Coloquei a cabeça sob a torneira do tanque. Enquanto eles diziam, Ô
            Saulo, aumenta a dose. Os outros, Mata! Mata! Mata!, dizia o Dr.
            Villa-lobos, mata essa desgraçada que ela passou Aids prá mim. Sendo
            que quem deve ter aids é ele. Embaixo das axilas cheias de caroços.
            Eu
            transei sim com Villa-lobos, no Hotel dna Viridiana, com camisinha.
            Já estava a 14 anos sem transar com ninguém.
            Eu, Márcia, não tenho aids, não tenhão câncer, não tenho doença
            nenhuma. E sim eles. E elas. Não sou bicha, não sou guey, não sou
            sapatona, não sou redenvu, não sou tracatoeira(???). Sou fêmea, mãe
            de dois filhos.
            Transei com este pastor maligno que eu não sabia que era pastor por
            obra e graça do satanás, gente deles. O gás ficou saindo da antena
            semana, dias. Após eu mudar de lá continuou saindo e a camera
            filmando toda pensão. Seu Salvador Donatelle todos os dias via o gás
            saindo da antena. À noite ele aumentava a dose. Entrava todo dentro
            do meu corpo e dentro do meu quarto também continuava cada vez mais
            a sair pelos furos da parede. O Alberto Hegeu Pai falou ao Saulo
            cuidado ela é muito inteligente.
            Foi então que eu falei Quem está aí? Falei o nome de cada um e
            perguntei por que queria me matar. O Saulo falou: Ela descobriu tudo
            e agora?


Abaixo, um fac-semile de uma das folhas:







Esta é a foto da autora do texto, Marthia.
Segundo informações do Blog INFODINÂMICO, depois que tentaram matá-la, tal ela descreve acima, Marthia foi morar nas ruas.

Hoje em dia é conhecida como a Xuxinha de Higienópolis, mas isso é uma descrição popular sarcástica, na verdade, ela é uma grande poetisa e uma pop star incompreendida.

A começar pelo nome.

2.3.10

O menino que comia lápis

O cu do mundo onde eu nasci, era uma vila operária em Floripa, que
foi construída basicamente pra abrigar os operários da construção do
aeroporto local e as estradas que a ele levariam. Meu avô, que era
pescador no interior da ilha, mudou-se pra ali, achando isso um
grande avanço na vida, pois teve acesso a uma casa na cidade e ficou
pagando mil réis da hipoteca pelo resto da vida.

Meus pais foram morar juntos com meus avós. Formávamos uma família
apinhocada num moquifo, mas aparentemente feliz.

Junto da nossa família haviam outras famílias, cada uma com sua
sina. Bem em frente, morava um velho que havia trabalhado na estrada
e no aeroporto com meu avô. Ele tinha uma esposa desdentada, que
falava uma língua incompreensível. Achavámos que era uma bruxa,
certamente. O filho deles, um menino que era
proibido de sair de casa, vivia trancafiado sob o jugo e loucura dos
dois.

Nós crianças, sabíamos várias histórias arrepiantes sobre eles e
também como a velha poderia rogar pragas. Por isso nem nos
aproximávamos muito da casa. Mas mesmo assim, sabíamos que Nicolau,
o menino daquela casa, pela falta de brinquedos, amigos e mesmo
alimento, tinha ratos como bichos de estimação e comia lápis.

E era verdade. Fomos capazes uma vez de espiar pela janela e vê-lo
com um lápis na boca; outra vez o vimos guardando pedaços de papéis
numa caixa de sapatos; da terceira vez quase fomos pegos pela velha
e para evitar uma praga maligna, resolvemos nunca mais tentar. Já
tínhamos provas suficientes de que ele mantinha ratos em um ninho de
papel dentro de uma caixa de sapato e que comia lápis.

E depois também era fácil vê-los pela rua quando iam fazer compras.
Naquela época não existiam sacolas, as pessoas traziam tudo nas mãos
e, podemos confirmar: lápis. Nunca o vimos com nenhum brinquedo.
Enquanto alguém era presenteado com uma pistola automática da Atma,
o outro com um jogo de botão da Estrela, o menino do outro lado da
rua ganhava lápis.

A velha era mesmo louca, alimentar a criança com lápis. E nós,
crianças, nos perguntávamos, será que era por isso os cabelos pretos
e os olhos negros do Nicolau?

Nossa infância foi de tardes em tardes de bola de gude, de julhos em
julhos de pandorgas, de verões a invernos de baderna. Nicolau
passava tudo isso trancado no seu quarto, comendo lápis e fazendo
ninhos com pedaços de papel na caixa pro seus ratinhos, ergh!

Chegou então o dia que o velho morreu. Foi quase na mesma época que
também morreu meu avô. Aqueles homens traziam no corpo todo o peso
das pedras que carregaram e furaram com os próprios dedos. Passavam
por cima deles agora todo o peso dos carros que passaram sobre a
estrada que eles construíram. Suas almas eram pistas de pouso de um
cansaço imenso pelo trabalho no aeroporto. Até hoje a estrada está
lá, pois sua fisiologia de asfalto se reconstitui ano
após ano, mas os homens que a construiram, se foram e estão
esquecidos.

Assim que o velho morreu, parece que as coisas pioraram naquela
casa. Nós já éramos quase adolescentes. Naquela época, com 14 anos
ainda se era meio criança, mas podíamos entender com clareza que a
velha havia adoecido terrivelmente. A casa virou um estacionamento
de ambulâncias e a única coisa que não mudava era Nicolau e o lápis
na boca. Não sabíamos bem o que se passava lá dentro, só sabíamos
que logo a velha iria morrer.

No último dia, quando ela foi para o hospital, vieram uns homens
para ver Nicolau. Nós todos sentados no muro vimos também chegar uma
ambulância que apesar de branca, não parecia uma daquelas
ambulâncias comuns. Alguém falou que deveria ser do manicômio. De
dentro dela saiu uma senhora gorda e loira. Entrou na casa com
sacolas e horas depois saiu com Nicolau pelo braço e o levava para a

ambulância.

Corremos todos para ver de perto. Pela primeira vez podíamos olhar
Nicolau bem de perto. Pela primeira vez o vimos vestido completo,
com meias e sapato e, inclusive, camisa. Ele olhou a cada um de nós
com seus olhos profundamente pretos, de tanto comer grafite, o
coitado. E talvez por aquele grafite no olhar, estava tão claramente
escrito que Nicolau ia para nunca mais voltar. Nós não sabíamos para
onde, mas ele também não.

Mas com certeza, onde quer que aquela ambulância o levasse, iria ser
melhor pra ele do que aquela prisão onde que ele vivia. Mas será que
ele iria ser acostumar com brinquedos de verdade? Será que não iria
sentir saudades dos seus ratos? Será que ele iria se acostumar a
comer pão, em vez de lápis de madeira e carbono? Será que ele iria
para escola e aprenderia que lápis era para escrever. Será que ele
não iria comer a borracha de sobremesa? Alguém até brincou e todos
rimos quando a ambulância se afastou. Mas era um riso oco.

A ambulância foi embora e nunca mais voltou com as respostas sobre
Nicolau. A casa ficou vazia e nós também.

Duas semanas depois a velha voltou do hospital. Eu estava indo pra
escola quando a porta da sua casa se abre, ela aparece e me chama.
Meu primeiro impulso foi sair correndo, mas ela insistiu saindo
trôpega à porta.

Ela me levou para dentro da casa e me dirigiu ao quarto de Nicolau.
Ao entrar naquela casa lúgubre, que nunca havia visto luz, fiquei
pensando no que aquela velha queria de mim. Senti medo. Será que
Nicolau havia voltado e estava de molho, depois de uma surra
estendido num canto, como antigamente?

Entrei no quarto dele e estava vazio. Não havia uma cama, sabíamos
que ele dormia no sofá da sala. Só havia um guarda roupa velho e,
num canto, os lápis, pedaços de papel e uma caixinha ao lado. Será
que aquela velha pensava que eu iria querer aqueles lápis todos com
a ponta mastigada?

Ela me indicou a caixinha e percebi que ela queria que eu cuidasse
dos ratos dele. Mas isso era demais! Eu daria aqueles ratos ao
primeiro gato que visse.

Quando me aproximei pra apanhar e olhar a caixa, fui percebendo que
os lápis eram tocos minúsculos, na verdade com uma extremidade
mordida, mas a outra bem apontada e com sinais de gastos e não
comidos, como acreditávamos.

Quando abri a caixa, me preparando até pro cheiro horrivel de
possíveis ratos mortos, vi que dentro dela não haviam ratos. Mas
muitas folhas pequenas de papel. E estes papéis estavam todos
escritos. E eram poemas. Muitos poemas. Nicolau não criava ratos
nojentos como pensávamos, Nicolau escrevia poemas. Nicolau não era
louco, era poeta.

A velha fez com que eu apanhasse a caixa e me fosse. Com a mesma
vassoura que iria varrer os lápis e os restos de pontas, ela foi me
espantando da casa, típico de bruxa. Antes que ela me rogasse alguma
praga, eu saí.

Passei dois dias lendo os poemas do Nicolau. Dois dias depois a
velha morreria. Guardei os poemas dele até hoje.
Pra encerrar este relato, um poema de Nicolau Flores. Na minha
opinião não é o melhor dele, mas é aquele que as pessoas geralmente
mais gostam: